terça-feira, 21 de julho de 2015

A ÚLTIMA DANÇA



O dia chegara. 21 de abril. Reinauguração do salão de baile do Clube Alvorada. A cidade estava em pleno alvoroço, afinal meio século se passara desde o último baile. Para ilustrar a reinauguração nada melhor que um baile da terceira idade e trazer de volta os jovens foliões daquela época. E claro, lá estava eu eufórico e já treinando alguns passinhos, mesmo com as dores no ciático e nos joelhos, não importava, eu queria ter a oportunidade de poder dançar, nem que fosse pela última vez.
Eu estava como aquele salão de baile, fechado por meio século, desde aquele último baile nunca mais dancei, era como se meu corpo não quisesse mais bailar por outros salões, a memória atrapalhada pela idade não conseguia encontrar o verdadeiro motivo daquele fechamento. Do meu corpo. O salão foi por motivo financeiro, era muito custoso mantê-lo aberto para tão poucos bailarinos. O que mantinha o clube, ainda na ativa, era o time de futebol da segunda divisão.
A janela do meu quarto mostrava a velha praça, agora movimentada pelos veículos que chegavam para o grande baile. A maioria dos meus amigos havia mudado para outras cidades depois da formatura, exatamente depois do último baile de formatura naquele salão. Algumas imagens daquele dia passam pela minha mente, a insistência de minha mãe em colocar-me uma gravata borboleta, a escadaria da entrada do salão abarrotada de pessoas bem vestidas, as meninas com seus vestidos de saia rodada, acho que era assim que chamavam. Os garotos com seus ternos, sapatos engraxados, Gumex nos cabelos e o aroma do inconfundível Lancaster. Eu, Tonico Garça e o Quincas Bola, éramos inseparáveis, desde o Grupo Escolar, em tudo o que fazíamos, futebol, nadar na lagoa, caçar passarinhos, pescar e tudo mais, naquele dia não seria diferente, tanto que combinamos de se encontrar na praça e seguirmos os três juntos até o salão. Enfeitada com bandeirolas coloridas, o cheiro da pipoca estourando no carrinho do Seo João, as luzes acesas em volta da calçada, as buzinas dos carros que aguardavam para estacionar, o sargento Gomes orientando a travessia das senhoras com seus filhos mais novos e a entrada do velho salão iluminado e com o letreiro avisando sobre o Grande Baile dos formandos daquele ano.
Da praça até a porta de entrada trazia uma emoção que chegava a apertar a boca do meu estômago, o primeiro baile, do qual eu era um dos protagonistas, meu baile, minha formatura, mesmo não sendo um bom aluno, eu chegara até ali, naquele momento me senti um homem que deixava a infância para trás, mas sem se preocupar com o futuro, eu queria mesmo era entrar naquele salão e me sentir o mais importante. A porta principal estava aberta e a Dona Francisquinha organizava as turmas no hall por classe, era uma luta descomunal para controlar a ansiedade e o deslumbre daqueles alunos. Nossa classe era composta de oito meninos e dez meninas, nenhuma interessante na época, eu gostava mesmo era da Anita Fragoso, lourinha de olhos verdes, seios grandes e uma boca que fazia inveja, mas parecia que não se interessava por nenhum de nós, daquela cidade, como ela dizia, queria conhecer o mundo e casar com um homem bem rico.
Depois da cerimônia e entrega dos canudos vazios, a orquestra começou a tocar e quem começou mesmo o baile foram os adultos, animados e despreocupados lotavam o grande salão iluminado e de chão de tacos encerados. Os mais velhos estavam sentados em volta de grandes mesas, enfeitadas e cobertas com toalhas brancas e vermelhas. Os meninos e meninas estavam em volta e em lados diferentes, trocavam olhares, cochichavam e alguns casamentos começaram naquela noite. Minha turma não era muito de dançar, gostávamos de ficar perturbando os mais jovens e fracos da escola, porém naquela noite eles me abandonaram pela primeira vez. Tonico Garça se engraçou com a Vitinha, menina que gostava de ler e pintar, cabelos sempre com tranças e vestidos coloridos com flores ou animais. Quincas Bola foi puxado da minha companhia pela Estelinha, que há muito tempo vinha tentando namorá-lo. Naquela noite conheci a solidão, coisa que depois carreguei pela minha vida inteira. Não me casei e nem tive filhos e perdi o contato com os meus dois melhores amigos, talvez hoje eu os reencontre.
Apaguei a luz do quarto e saí pelo velho corredor, uma angústia tomou conta do meu coração ao olhar o papel de parede amarelado pelo tempo do corredor mal iluminado. Quantas vezes eu atravessei aquele corredor, sempre silencioso, sem nunca dar muita atenção ao papel de parede ou mesmo o chão assoalhado, são coisas que não notamos em nossa íntima euforia, talvez, pela pressa de nossa juventude, deixamos de notar coisas importantes ou mesmo fazer coisas importantes, que não eram tão importantes naquele momento, coisas juvenis, eu acho. Continuei pelo velho corredor, desci as escadas de mármore desgastado até chegar na porta da rua. Também parei por alguns segundos diante da velha porta de madeira com aquela janelinha de vidro trabalhado e a maçaneta redonda de bronze, abri e fiquei no alpendre. A rua continuava movimentada por rostos conhecidos e desconhecidos, ali parado no primeiro degrau da escada e segurando no corrimão fino de ferro, voltei ao tempo. Tonica Garça e Quincas Bola do outro lado da rua, arrumando as gravatas e cintos, ajeitando os cabelos engordurados pelo Gumex e abotoando os paletós. Deixei escapar um leve sorriso e pude ouvir a minha mãe dando as últimas instruções para que não fizesse traquinagens na festa de formatura, como das outras vezes, eu prometi, mas não cumpri. Desci os três degraus com dificuldade, sempre apoiado no velho corrimão, que tantas vezes saltei por cima para agilizar o caminho, na calçada levantei o tronco para dar um ar de um velho mais conservado e altivo, ajeitei o paletó, respirei fundo e caminhei em direção ao velho salão.
As lembranças fazem com que notemos as pequenas coisas, que tantas vezes passamos, o vizinho na janela, a calçada quebrada, uma pintura nova na fachada, um rosto novo que mal cumprimentamos, o som de um pássaro cantando na praça, o velho cachorro caminhando entre as pernas dos pedestres ou mesmo uma moça nova com um short mais ousado. Assim foi meu trajeto até a porta de entrada do velho reinaugurado salão do Clube Alvorada. Cada degrau eu voltava ao tempo, cada cumprimento eu podia ouvir as vozes dos velhos e desaparecidos amigos da turma, ao entrar pelo hall refeito eu pude sentir nos braços o sangue se agitar devido as batidas mais fortes do coração, era como se voltasse ao tempo e até olhei ao meu lado para tentar enxergar Tonico Garça e Quincas Bola, ri de mim mesmo. Desci as escadas forradas de um carpete vermelho com barras douradas prendendo em cada degrau. O salão parecia maior, mais iluminado e o chão mais lustroso, as mesas postadas em volta, formavam um grande círculo, deixando um vazio no centro para os pés de valsa deslizarem ao som da música. No fundo o palco, bem mais iluminado, estava repleto de músicos, uns dez acho, com seus instrumentos sendo afinados e um crooner bem alinhado, parecendo Frank Sinatra, com um smoking branco sobre uma calça preta e a gravata borboleta também preta, testava o microfone. A maioria das mesas da frente estavam ocupadas, todos queriam ver de perto a orquestra, o crooner e talvez cantarem juntos algumas músicas antigas. As laterais do salão eram abertas para circular o ar pelo salão e proporcionar aos fumantes uma escapada ou outra para a varanda que circulava o prédio. Fui me sentar bem próximo a uma das laterais numa mesa para quatro pessoas, logo que me acomodei um garçom trouxe uma taça de vinho branco, cortesia da casa, recusei pois não gosto de vinho branco e pedi um Gin tônica. Depois veio uma garçonete e colocou um pratinho com alguns salgadinhos, diferentes, bom, gostoso, e em pouco tempo ele estava vazio.
Dali, bebericando o Gin tônica, podia ver a porta de entrada e talvez com sorte, rever alguns amigos, mas durante uma hora, nada. Resolvi fumar um cigarro e esticar as pernas, que já teimavam em adormecer pela má circulação. Recostei-me na mureta de cimento coberta por cerâmica vermelha e acendi o cigarro, proibido pelo médico e deixei a mente valsar com o som da música que vinha do salão, Boemia, cantada pelo saudoso Nelson Gonçalves. Minha vida podia ser tratada como uma boemia, solitária, cheia de altos e baixos, mulheres temporárias, muita bebida e poucas horas de sono. Simples e pouco produtiva, apenas divertida. Hoje estou aposentado, solteiro, encostado nessa mureta gelada, ouvindo Nelson Gonçalves e esperando o fim chegar. Nossa que trágico, coisa de velho na descida da estrada da vida. Volto então para o salão, as luzes, casais bailando e me deparo com uma linda senhora vestida de azul turquesa e uma linda flor nos cabelos grisalhos. Noto que ela está me encarando, talvez nos conhecemos e o tempo nos deixou marcas que nos tornaram irreconhecíveis, não tenho nada a perder naquela noite solitária e vou em direção dela.
 - Muito prazer, sou...
- Vitinho! Respondeu ela em cima, sem pestanejar.
- Nos conhecemos? Forcei a mente e não veio nada, nenhuma lembrança, nada.
 Ela então se recostou na mureta ficando bem próxima de mim, seu perfume era excitante e inebriante, como a música do Nelson, seus olhos oblíquos como o de Capitu de Machado de Assis, seu rosto, mesmo marcado pelo tempo, era lindo e bem desenhado. Nada. Nenhuma lembrança. Meu Deus! Como é triste ficar velho.
 - Você não vai se lembrar de mim. Sou a Ritinha Alves. Disse ela me olhando com uma certa ternura que me incomodou.
 Forcei a mente novamente e nada, mas aí veio uma imagem, uma menina que se sentava no fundo da classe e de poucas palavras, cabelos negros e duas tranças amarradas com fitas amarelas.
 - Ritinha Alves! A menina tímida e calada da classe.
- Isso mesmo! Você não mudou quase nada, apenas envelheceu. Continua bonito e vistoso. Completou tocando minha mão com a palma da sua.
- Desculpe não tê-la reconhecido, mas nós pouco se falávamos.
- Eu sei! Não precisa se desculpar, afinal são cinquenta anos e nossas mentes nos enganam sempre. Riu.