Quando
ela acordou aquela noite, sentiu alguma coisa em seu coração pulsar.
Dentro do navio com destino à Europa, Alina desceu de sua cama deixando
sua camisola branca navegar no ar quando atingiu a proa e se segurou
em um dos mastros.
Os ventos marítimos
sacudiam as ondas como titãs revoltos, atirando sobre ela uma garoa
salgada e gelada, enquanto as velas estremeciam com a força que as
rajadas exerciam sobre elas. Em meio ao profundo assovio
da tempestade ela ainda assim conseguia ouvir aquele som profundo
emergindo da água como um chamado.
Ela seguiu mais uns passos
e olhou para as ondas escuras, como se o barco navegasse através da
noite, cortando sua essência sublime. O som continuava mais forte, como
uma voz retumbando das profundezas. Desvencilhou
uma mão da guarda do navio e por algum instinto tentou tocar a água,
observando algo ligeiramente luminoso se aproximar.
Inesperadamente ela foi
jogada para fora da beirada e sacudida. Alina acordou de seu transe
apavorada e encontrou os olhos do capitão do navio a encarando com as
sobrancelhas abaixadas.
— O que foi isso? — Ele gritou.
— Eu não sei — ela respondeu em um sussurro e se desvencilhou dele, se afastando e voltando para os seus aposentos.
Mais tarde, ela percebeu
que havia adormecido quando acordou com os gritos dos marinheiros. Não
se deu ao trabalho de se trocar quando subiu as escadas molhadas pela
chuva e encarou a tripulação em pânico.
— Encalhamos! — Disse um
dos marujos, puxando as velas, para se aproximarem mais da pequena ilha
em que o navio havia desembarcado. A floresta se erguia esplendorosa,
iluminada apenas pela lua cheia, agora que a
tempestade havia diminuído — é a maldição, está acontecendo.
Sua atenção se voltou para o marujo atordoado.
— Maldição? — Ela
perguntou e o capitão do navio passou por ela, descendo uma mão sobre
seu ombro como que se para acalmá-la. O homem e seu capitão se
encararam.
— Os nativos falam de um
antigo deus adormecido. Talvez nós o tenhamos acordado, afinal — ele a
olhou com receio — estamos levando uma mulher pelo seu reino.
— Tolice — o capitão volveu — estamos desembarcando.
Eles desembarcaram levando
pouco além das roupas do corpo e suprimentos para passar alguns dias
enquanto os homens consertavam o casco do navio. Quando acenderam uma
fogueira, um dos marujos puxou um violino e começou
a tocar uma melodia que Alina conhecia de sua infância.
— Conhece essa música
Alina? — O capitão questionou, quando ela balançou a cabeça em
afirmativa, ele convidou — então cante comigo e alegre nossos homens.
Talvez assim eles apaguem de suas mentes essa ideia de antigos
deuses adormecidos.
O violino decaiu o
suficiente para eles começarem e Alina tomou fôlego, se erguendo para
caminhar ao redor dos homens em círculo diante da fogueira. A sua voz
melodiosa em companhia do tom barítono do capitão.
O navio, ele balança, Céus ho, Céus ho.
Na escuridão azul da tempestade
Eu me segurei firme ao Capitão
Ele puxou suas calças.
“Você não tem dormido” Céus não, ele disse.
Por tantas luas e sóis
Oh, eu vou dormir quando alcançarmos a praia
E ore para cheguemos logo lá
Ela rodeou os homens
enquanto cantava, com seu rosto banhado pela luz das chamas e o choro do
violino junto ao dueto, impediu que qualquer um dos homens ouvissem os
sussurros e os passos ao redor deles na floresta.
Eles continuaram ignorantes do perigo ao redor deles:
Ele disse: Agora silêncio amor, aqui está sua camisola.
Ali está a cama, abaixe a lanterna
Mas eu não quero dormir
Alina se virou para a floresta quando ouviu um uivo humano e terminou o último verso sozinha:
— Em todos os meus sonhos, eu me afogo —
ela viu que todos entraram em comoção com o som repentino e antes que
pudesse voltar para dentro do círculo de marinheiros ela foi puxada para
dentro das árvores com
ferocidade e antes de mergulhar na escuridão, ouviu o seu nome sendo
bradado pela voz rouca do capitão.
Ela foi arrastada por
entre as árvores, incapaz de ver seu captor, enquanto ouvia uma série de
sons de uma linguagem nativa ao seu redor, como se aqueles índios
pudessem se esconder em meio às sombras.
Só pararam quando eles se
aproximaram de um penhasco e então a deixaram cair em seus joelhos,
tentando recompor sua postura. Quando ergueu os olhos, viu o mar revolto
além da rocha e teve a sensação que havia experimentado
no navio, com a voz que acreditou que a chamava. Deu um passo em direção
ao precipício quando uma onda maior atingiu a borda e pode ouvir a voz
de seu sonho, cantando a mesma cantiga de marinheiros e sentiu seu
próprio coração afundar quando sua mente se nublou
e ela o acompanhou na canção:
O céu que brilhou , céus não, céus não
Seu travesseiro escorregou para a beira.
As cortinas correram entre minhas pernas como se começassem a afundar.
Fechei os olhos, céus não, céus não
Emergido do oceano revolto se ergueu um monstro com cabeça de polvo
e enormes asas de morcego e por mais que não pudesse discernir seus
lábios, ela sabia que era ele quem cantava. Quando ele atingiu a pedra
em que ela estava, a sua figura diminuiu até
que ele se transformasse em um homem com traços parecidos com os dos
nativos, envolto em uma túnica negra, enquanto seus cabelos escuros
sacudiam com a tempestade.
Ao longe, como em um sonho, ela ouviu a voz do capitão gritar seu
nome, mas ela não conseguiu refrear a si mesma, enquanto caiu nos braços
da aparição.
Os índios ao redor gritavam em uníssono:
— Chutlhu! Chutlhu! Chutlhu!
Ela naufragou em seus braços, até que ele estivesse apoiado em um
dos joelhos e ela estivesse quase deitada no chão, enquanto a voz dele
ainda a mantinha em sua hipnose. Os olhos escuros dele brilhavam como se
fossem feitos de água e ela podia ver os contornos
do polvo alado em suas íris, enquanto ele entoava os últimos versos:
Enquanto o navio se rasgou e afundou.
Redemoinhos na água indo para o boca do Inferno
"Eu estou te implorando por favor, me acorde"
Quando o som de um tiro estourou no ar, ela acordou em choque e
observou o homem se afastar apenas alguns centímetros e tocar o próprio
peito, erguendo a mão e observando a mancha liquida de seu próprio
sangue. Ele encarou o capitão alguns metros a sua
frente segurando sua pistola tremulamente nas mãos e então ergueu Alina
nos braços e se virou para o penhasco. Antes que ela pudesse ouvir a
última frase, eles mergulharam no mar.
“Em todos os meus sonhos eu... "