“…I don’t know where I’m going
I guess it’s a just a
phase”.
(Trecho da música
“Mariane”,
da banda Legião Urbana).
E então... é o fim. Não saberia dizer isso de outra forma; desconheço a justa palavra que
possa exprimir de maneira precisa o que sinto e o que sucede comigo nesse
instante decisivo. Só sei que este é o fim. E sabemos quando é o fim. Não
sabemos explicar como sabemos, mas sabemos quando é o fim. O fim da linha; o
fim da estrada. O fim de tudo. Aquilo que já se ouviu milhares de vezes como
sendo “o curso natural da vida”. O momento em que é maior o silêncio do lado de
fora e mais rouca a voz que grita desesperadamente do lado de dentro. Quando
não há ninguém por perto. A solidão costuma ser a companheira mais usual nessas
horas. As horas do fim. Nunca soube dizer ao certo o que era felicidade, mas poderia
afirmar com certeza que felicidade para mim, agora, seria ter alguém aqui, ao
meu lado nesse momento. Alguém para apertar minha mão e com a voz calma e
tranquilizadora dizer que tudo vai ficar bem. Mas não há ninguém aqui; nunca
houve. Minha morte será solitária, como foi minha vida até então. E agora é o
fim.
Não
precisei me concentrar muito para conseguir ouvir ao fundo, como se estivesse
bem distante, o som dos bipes tocando cada vez mais espaçadamente. O coração
alquebrado ainda insiste nas braçadas contra o oceano; ele sempre insistiu em
causas perdidas; mas é inútil. Lembrei de uma mulher, já idosa, com câncer e já
em estado terminal, que semana passada assinou um termo de compromisso e pediu
para ser levada embora, disse que preferia morrer em casa. Hoje a entendo e lhe
dou razão, UTI de hospital é realmente
um ambiente funesto. Estar aqui já é uma espécie de morte. Há mais uns três que
esperam sua hora por aqui; e por aqui, às vezes, a hora não chega. Pior não é o
fio afiado da foice que lhe decepa a cabeça de uma vez só. O pior é a espera
por esse momento. E aqui parece ser a antessala do fim; o último passo antes do
grande nada.
Sem forças
para mais nada, procurei relaxar, e a dor, que até poucas horas atrás, era
insuportável, foi aos poucos amenizando, dando lugar à letargia. A aceitação do
inevitável pode levar a um estado de compreensão que alivia dores e liquida
falsas e últimas esperanças. Enquanto fechava os olhos lentamente, fui sendo
tomado, mesmo contra minha vontade, por inúteis reflexões, toscas imagens,
ruídos e sons dissonantes e muitas, muitas perguntas. Comecei por me perguntar
o fiz com meus sonhos que não consegui ou não fui capaz de realizar. Sonhos
irrealizados não somem, se desfazem, se esfumaçam ou evaporam no ar. Alguns
sonhos se despedaçam, mas seus pedaços continuam presentes na atmosfera da
memória, com seus estilhaços fincados na alma da infeliz criatura. Existem
algumas medidas paliativas, algumas ações, atitudes e movimentos que fazemos
para conter o impacto destrutivo de um sonho que não se realizou. Uma dessas
medidas é o adiamento. Adiamos os sonhos; nos convencemos de que num futuro não
muito distante, estes sonhos se realizarão; mas chega um ponto em que não
seguramos mais as pontas, o sonho empedra, nos desapontamos, e o que era
esperança se transforma num vazio sem som. E o sonho vira um totem gigante, uma
esfinge que nos encara e pergunta: "o que fazer agora?". O que fiz
com esses sonhos cheios de som e fúria?, o que fiz com esses sonhos de eterna
juventude e amor para toda vida?, O que fiz com os sonhos de mar de rosas e céu
de brigadeiro? O que fiz com os sonhos de uma noite de verão shakespeariana?,
com os sonhos paradisíacos de virgens amorosas que esperam por seus
homens-bomba? Sonhos de milagres de crescimento econômico do país do futuro? O
que fiz com esses meus sonhos que, por anos e anos, entupiram meus armários e minha
consciência?
Não me
veio nenhuma resposta que diminuísse o peso da culpa causada pela pergunta.
Também me perguntei qual havia sido a última vez que havia andado descalço na
rua; que fiz o que quis e não o que disseram que eu tinha que fazer; que cedi o
meu lugar para alguém que achei que precisava mais do que eu; que me vi
obrigado a mentir por achar que a verdade machucaria alguém; que disse “se deus
quiser!”; que rezei; que amei de verdade; que desejei que algo de ruim
acontecesse com alguém de quem não gostava; que disse “eu te amo” sem achar que
não estava sendo realmente sincero; que acordei desejando ser outra pessoa; que
quis permanecer deitado um pouco mais antes de levantar para trabalhar; que,
antes de cair no sono, me perguntei o que estava fazendo com minha vida, o que
estava fazendo nesse mundo; que perdi a fé; que cantarolei uma canção qualquer
em voz alta; que disse “essa é a última vez”; que achei ter encontrado o amor
da minha vida, mas foi engano. Não lembrei de muita coisa. Estava tudo
embaralhado na memória. Dei uma rápida e intensa passada nos lugares dentro de
mim. Em todos os lugares dentro de mim. E existem muitos lugares dentro de mim.
Existem cavernas escuras, frias e obscuras onde meus monstros interiores
hibernam, esperando o momento de serem atiçados e sua bestialidade vir à tona.
Existem palácios suntuosos onde meus desejos luxuriosos se refestelavam,
sabendo-se inconscientemente inalcançáveis. Existem casas simples e humildes
onde eu habitualmente passava a maior parte do tempo e que, na maioria das vezes,
as desprezava por achar que merecia coisa melhor. Existem templos onde vez por
outra eu entrava para, quase sempre, pedir, algumas vezes perguntar e quase
nunca para agradecer à Deus. Existem fortalezas, frágeis fortalezas, onde guardo
meus mais íntimos segredos. Existem cruéis masmorras que aprisionava minhas
libidinosas perversões sexuais, desvios de caráter e tentadoras vontades
criminosas. Existem cabanas de sapê em ilhas desertas onde ficava abandonado
quando me sentia só. Existem aqueles lugares onde eu ficava por um tempo para
pensar; outros em que me sentia um inquilino; lugares esquecidos, onde
lembranças e sentimentos mofam. Existem clubes de jogos e diversões para
ocasiões alegres onde disfarçava minha apatia. Existem casas, apartamentos,
pensões, hotéis, barracos e castelos. E existem também lugares onde eu ficava
desabrigado, sem alento, com aquela dolorosa sensação de abandono e medo.