quinta-feira, 28 de abril de 2016

AS HORAS DO FIM





I don’t know where I’m going

I guess it’s a just a phase”.


(Trecho da música “Mariane”,

da banda Legião Urbana).




E então... é o fim. Não saberia dizer isso de outra forma; desconheço a justa palavra que possa exprimir de maneira precisa o que sinto e o que sucede comigo nesse instante decisivo. Só sei que este é o fim. E sabemos quando é o fim. Não sabemos explicar como sabemos, mas sabemos quando é o fim. O fim da linha; o fim da estrada. O fim de tudo. Aquilo que já se ouviu milhares de vezes como sendo “o curso natural da vida”. O momento em que é maior o silêncio do lado de fora e mais rouca a voz que grita desesperadamente do lado de dentro. Quando não há ninguém por perto. A solidão costuma ser a companheira mais usual nessas horas. As horas do fim. Nunca soube dizer ao certo o que era felicidade, mas poderia afirmar com certeza que felicidade para mim, agora, seria ter alguém aqui, ao meu lado nesse momento. Alguém para apertar minha mão e com a voz calma e tranquilizadora dizer que tudo vai ficar bem. Mas não há ninguém aqui; nunca houve. Minha morte será solitária, como foi minha vida até então. E agora é o fim.

Não precisei me concentrar muito para conseguir ouvir ao fundo, como se estivesse bem distante, o som dos bipes tocando cada vez mais espaçadamente. O coração alquebrado ainda insiste nas braçadas contra o oceano; ele sempre insistiu em causas perdidas; mas é inútil. Lembrei de uma mulher, já idosa, com câncer e já em estado terminal, que semana passada assinou um termo de compromisso e pediu para ser levada embora, disse que preferia morrer em casa. Hoje a entendo e lhe dou razão, UTI de hospital é realmente um ambiente funesto. Estar aqui já é uma espécie de morte. Há mais uns três que esperam sua hora por aqui; e por aqui, às vezes, a hora não chega. Pior não é o fio afiado da foice que lhe decepa a cabeça de uma vez só. O pior é a espera por esse momento. E aqui parece ser a antessala do fim; o último passo antes do grande nada.

Sem forças para mais nada, procurei relaxar, e a dor, que até poucas horas atrás, era insuportável, foi aos poucos amenizando, dando lugar à letargia. A aceitação do inevitável pode levar a um estado de compreensão que alivia dores e liquida falsas e últimas esperanças. Enquanto fechava os olhos lentamente, fui sendo tomado, mesmo contra minha vontade, por inúteis reflexões, toscas imagens, ruídos e sons dissonantes e muitas, muitas perguntas. Comecei por me perguntar o fiz com meus sonhos que não consegui ou não fui capaz de realizar. Sonhos irrealizados não somem, se desfazem, se esfumaçam ou evaporam no ar. Alguns sonhos se despedaçam, mas seus pedaços continuam presentes na atmosfera da memória, com seus estilhaços fincados na alma da infeliz criatura. Existem algumas medidas paliativas, algumas ações, atitudes e movimentos que fazemos para conter o impacto destrutivo de um sonho que não se realizou. Uma dessas medidas é o adiamento. Adiamos os sonhos; nos convencemos de que num futuro não muito distante, estes sonhos se realizarão; mas chega um ponto em que não seguramos mais as pontas, o sonho empedra, nos desapontamos, e o que era esperança se transforma num vazio sem som. E o sonho vira um totem gigante, uma esfinge que nos encara e pergunta: "o que fazer agora?". O que fiz com esses sonhos cheios de som e fúria?, o que fiz com esses sonhos de eterna juventude e amor para toda vida?, O que fiz com os sonhos de mar de rosas e céu de brigadeiro? O que fiz com os sonhos de uma noite de verão shakespeariana?, com os sonhos paradisíacos de virgens amorosas que esperam por seus homens-bomba? Sonhos de milagres de crescimento econômico do país do futuro? O que fiz com esses meus sonhos que, por anos e anos, entupiram meus armários e minha consciência?

Não me veio nenhuma resposta que diminuísse o peso da culpa causada pela pergunta. Também me perguntei qual havia sido a última vez que havia andado descalço na rua; que fiz o que quis e não o que disseram que eu tinha que fazer; que cedi o meu lugar para alguém que achei que precisava mais do que eu; que me vi obrigado a mentir por achar que a verdade machucaria alguém; que disse “se deus quiser!”; que rezei; que amei de verdade; que desejei que algo de ruim acontecesse com alguém de quem não gostava; que disse “eu te amo” sem achar que não estava sendo realmente sincero; que acordei desejando ser outra pessoa; que quis permanecer deitado um pouco mais antes de levantar para trabalhar; que, antes de cair no sono, me perguntei o que estava fazendo com minha vida, o que estava fazendo nesse mundo; que perdi a fé; que cantarolei uma canção qualquer em voz alta; que disse “essa é a última vez”; que achei ter encontrado o amor da minha vida, mas foi engano. Não lembrei de muita coisa. Estava tudo embaralhado na memória. Dei uma rápida e intensa passada nos lugares dentro de mim. Em todos os lugares dentro de mim. E existem muitos lugares dentro de mim. Existem cavernas escuras, frias e obscuras onde meus monstros interiores hibernam, esperando o momento de serem atiçados e sua bestialidade vir à tona. Existem palácios suntuosos onde meus desejos luxuriosos se refestelavam, sabendo-se inconscientemente inalcançáveis. Existem casas simples e humildes onde eu habitualmente passava a maior parte do tempo e que, na maioria das vezes, as desprezava por achar que merecia coisa melhor. Existem templos onde vez por outra eu entrava para, quase sempre, pedir, algumas vezes perguntar e quase nunca para agradecer à Deus. Existem fortalezas, frágeis fortalezas, onde guardo meus mais íntimos segredos. Existem cruéis masmorras que aprisionava minhas libidinosas perversões sexuais, desvios de caráter e tentadoras vontades criminosas. Existem cabanas de sapê em ilhas desertas onde ficava abandonado quando me sentia só. Existem aqueles lugares onde eu ficava por um tempo para pensar; outros em que me sentia um inquilino; lugares esquecidos, onde lembranças e sentimentos mofam. Existem clubes de jogos e diversões para ocasiões alegres onde disfarçava minha apatia. Existem casas, apartamentos, pensões, hotéis, barracos e castelos. E existem também lugares onde eu ficava desabrigado, sem alento, com aquela dolorosa sensação de abandono e medo.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

A VIZINHA SAFADA





Moro numa rua sem saída, com muitas casas geminadas e outras mais antigas. A minha é uma dessas antigas, sem garagem, com a janela e a porta de entrada junto a calçada. É dessa janela que tenho presenciado um movimento estranho na casa da frente a minha.
A moradora é separada do marido e mora na casa sozinha, percebi que ela não tem um horário fixo nem de saída e nem de chegada, deve ser alguma empresária, não só pelos horários, mas também pelas vestimentas, muito chic, sempre na moda, cabelos arrumados, óculos escuros até quando está chovendo. Porém não é esse o problema, se é que podemos chamar de problema, são as visitas pontuais de um homem, alto, moreno, corpo atlético, camiseta colada no corpo, que chega sempre as segundas-feiras, no final da tarde, abre o portão com sua própria chave, fecha e entra na casa. Ela sempre chega alguns minutos antes e quando não, ele a aguarda na frente do portão até a sua chegada.
Numa dessas tardes eu disfarcei que estava procurando meu cachorro, nem tenho cachorro, e me aproximei do portão, fiquei assustada com os urros e gemidos altos que vinham da parte de cima, onde provavelmente ficaria o quarto, envergonhada voltei para casa e fiquei espionando até que ele saísse. Nunca ficava mais que uma hora, uma hora e meia, sai com os cabelos arrumados, um sorriso nos lábios e sempre fecha o portão mandando um beijo com as mãos, deve ser para ela que fica esperando no portão de cima. Uma hora depois é ela quem sai, shorts ou bermudas, camiseta larga e sandália, voltando lá pelas dez horas.
Outro fato que me deixa encafifada é o motoqueiro que às vezes chega na casa, não tem dia e nem horário fixo, parece mais velho que o das segundas-feiras, algumas vezes passa quase o dia todo, outras apenas meia-hora. Já me aproximei algumas vezes, quando o motoqueiro está e não ouvi nenhum gemido ou grito. Presumi que esse deveria ser o marido. O estranho é que ele não dormia lá.
Contudo é nas segundas-feiras que o “bicho” pega na casa, sei pelo fato de ter feito amizade com a vizinha do lado e por duas vezes ficamos sentadas na sala dela, que faz parede com o quarto, e realmente os sons são inconfundíveis de que duas pessoas estavam fazendo sexo animal, feroz, incontrolável, que duravam quase quarenta e cinco minutos e depois silêncio, algumas risadas e a batida no portão da frente.
Confesso que fiquei até umedecida com tanta imaginação e fantasias passando pela minha cabeça. A vizinha me disse que isso era normal nas segundas e nos outros dias, era som alto e novelas da Globo.
Eu precisava entrar naquela casa. Precisava conhecer a alcova daquela mulher. Precisava saber da história dela e se possível conhecer os fatos que faziam aquela mulher gemer e urrar tanto.
Fui sondando, alguns cumprimentos até que criei coragem e fui bater na casa dela, era um sábado depois do almoço, com a velha desculpa da xícara de açúcar. Ela foi muito gentil, era mais bonita de perto, devia estar lavando roupa, pois ouvi o barulho da máquina de lavar no fundo da casa, mesmo assim pude sentir o aroma do perfume que exalava do seu corpo suado. Ela pediu desculpas pela bagunça e me fez entrar. Uma cozinha perfeita, vistosa, enfeites combinando, cadeiras estofadas em volta de uma mesa com tampo de vidro. Ela me fez sentar e foi buscar o açúcar. De onde estava pude ver a sala, linda, aconchegante, tapete branco fofo, poltronas coloridas combinando com as cores das paredes. Ela voltou. Ficamos conversando. Ela era agradável, risonha, olhos lindos, dentes brancos, seios fartos e coxas grossas. De repente a campainha tocou. Era o motoqueiro. Ela me apresentou. – Meu ex-marido! Viajei de novo nas fantasias. Então aquele era o marido e o outro deveria ser o amante. Ela conversou alguma coisa com ele e voltou para a mesa enquanto ele deixava o capacete sobre a mesa e ia para o fundo do quintal. – Minha máquina está fazendo um barulho esquisito! Continuamos a conversar e a vontade de conhecer a alcova era irresistível, até que ela me convidou e aceitei com um sorriso amarelo de vergonha.
Era realmente uma linda alcova, quarto todo branco, cama larga, cabeceira vermelha, viajei de novo, agora com pensamentos impuros, como diria minha avó. Era uma suíte perfeita, até havia uma banheira, aliás era uma hidromassagem. Viajei de novo. Agradeci a atenção e o açúcar e voltei para casa estarrecida. Que vizinha safada, pensei. Pensei no ex-marido, aliás se ele era ex não tinha problema, talvez até soubesse. Aquilo me incomodou o resto do fim de semana, ainda vi o marido novamente no domingo, depois os filhos e netos, isso mesmo ela era avó.
Na segunda à tarde, esperei o amante chegar, depois que ele entrou, esperei alguns minutos e fui até o portão, toquei a campainha. Alguns minutos depois ela apareceu, envolta em um roupão rosa. Só podia estar nua por baixo do roupão. Pedi desculpas e entreguei a xícara com o açúcar. Ela então pediu que eu subisse e colocasse a xícara na cozinha pois suas mãos estavam oleosas devidos aos cremes que passara. Era a minha chance de presenciar a safadeza que ela praticava. Ao chegar na cozinha corri meus olhos pela sala e não vi o fulano. – Está com visita? Perguntei como se não soubesse. Ela demorou um pouco para responder. – Sim! O meu terapeuta. Terapeuta questionei logo em seguida. – Tenho problemas na coluna. Explicou sem me convencer. – Venha conhecê-lo. Fui. Apressada. Ansiosa. Curiosa. Até a alcova branca.
Depois daquele dia fico esperando toda segunda-feira o carro do terapeuta estacionar no portão da vizinha e ele acenar para mim. Ansiosa para a terça-feira chegar logo e poder receber as massagens do terapeuta na minha coluna.