segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Desafio de Contos - Tema: "Música e História"; conto: "O Chamado de Chutlhu" autora: Leona Volpe


Quando ela acordou aquela noite, sentiu alguma coisa em seu coração pulsar. Dentro do navio com destino à Europa, Alina desceu de sua cama deixando sua camisola branca navegar no ar quando atingiu a proa e se segurou em um dos mastros.

Os ventos marítimos sacudiam as ondas como titãs revoltos, atirando sobre ela uma garoa salgada e gelada, enquanto as velas estremeciam com a força que as rajadas exerciam sobre elas. Em meio ao profundo assovio da tempestade ela ainda assim conseguia ouvir aquele som profundo emergindo da água como um chamado.

Ela seguiu mais uns passos e olhou para as ondas escuras, como se o barco navegasse através da noite, cortando sua essência sublime. O som continuava mais forte, como uma voz retumbando das profundezas. Desvencilhou uma mão da guarda do navio e por algum instinto tentou tocar a água, observando algo ligeiramente luminoso se aproximar.

Inesperadamente ela foi jogada para fora da beirada e sacudida. Alina acordou de seu transe apavorada e encontrou os olhos do capitão do navio a encarando com as sobrancelhas abaixadas.
— O que foi isso? — Ele gritou.
— Eu não sei — ela respondeu em um sussurro e se desvencilhou dele, se afastando e voltando para os seus aposentos. 
Mais tarde, ela percebeu que havia adormecido quando acordou com os gritos dos marinheiros. Não se deu ao trabalho de se trocar quando subiu as escadas molhadas pela chuva e encarou a tripulação em pânico.
— Encalhamos! — Disse um dos marujos, puxando as velas, para se aproximarem mais da pequena ilha em que o navio havia desembarcado. A floresta se erguia esplendorosa, iluminada apenas pela lua cheia, agora que a tempestade havia diminuído — é a maldição, está acontecendo.
Sua atenção se voltou para o marujo atordoado.
— Maldição? — Ela perguntou e o capitão do navio passou por ela, descendo uma mão sobre seu ombro como que se para acalmá-la. O homem e seu capitão se encararam.
— Os nativos falam de um antigo deus adormecido. Talvez nós o tenhamos acordado, afinal — ele a olhou com receio — estamos levando uma mulher pelo seu reino.
— Tolice — o capitão volveu — estamos desembarcando.
Eles desembarcaram levando pouco além das roupas do corpo e suprimentos para passar alguns dias enquanto os homens consertavam o casco do navio. Quando acenderam uma fogueira, um dos marujos puxou um violino e começou a tocar uma melodia que Alina conhecia de sua infância.
— Conhece essa música Alina? — O capitão questionou, quando ela balançou a cabeça em afirmativa, ele convidou — então cante comigo e alegre nossos homens. Talvez assim eles apaguem de suas mentes essa ideia de antigos deuses adormecidos.
O violino decaiu o suficiente para eles começarem e Alina tomou fôlego, se erguendo para caminhar ao redor dos homens em círculo diante da fogueira. A sua voz melodiosa em companhia do tom barítono do capitão.
O navio, ele balança, Céus ho, Céus ho.
Na escuridão azul da tempestade
Eu me segurei firme ao Capitão
Ele puxou suas calças.
“Você não tem dormido” Céus não, ele disse.
Por tantas luas e sóis
Oh, eu vou dormir quando alcançarmos a praia
E ore para cheguemos logo lá
Ela rodeou os homens enquanto cantava, com seu rosto banhado pela luz das chamas e o choro do violino junto ao dueto, impediu que qualquer um dos homens ouvissem os sussurros e os passos ao redor deles na floresta.
Eles continuaram ignorantes do perigo ao redor deles:
Ele disse: Agora silêncio amor, aqui está sua camisola.
Ali está a cama, abaixe a lanterna
Mas eu não quero dormir
Alina se virou para a floresta quando ouviu um uivo humano e terminou  o último verso sozinha:
— Em todos os meus sonhos, eu me afogo — ela viu que todos entraram em comoção com o som repentino e antes que pudesse voltar para dentro do círculo de marinheiros ela foi puxada para dentro das árvores com ferocidade e antes de mergulhar na escuridão, ouviu o seu nome sendo bradado pela voz rouca do capitão.
Ela foi arrastada por entre as árvores, incapaz de ver seu captor, enquanto ouvia uma série de sons de uma linguagem nativa ao seu redor, como se aqueles índios pudessem se esconder em meio às sombras.
Só pararam quando eles se aproximaram de um penhasco e então a deixaram cair em seus joelhos, tentando recompor sua postura. Quando ergueu os olhos, viu o mar revolto além da rocha e teve a sensação que havia experimentado no navio, com a voz que acreditou que a chamava. Deu um passo em direção ao precipício quando uma onda maior atingiu a borda e pode ouvir a voz de seu sonho, cantando a mesma cantiga de marinheiros e sentiu seu próprio coração afundar quando sua mente se nublou e ela o acompanhou na canção:
O céu que brilhou , céus não, céus não
Seu travesseiro escorregou para a beira.
As cortinas correram entre minhas pernas como se começassem a afundar.
Fechei os olhos, céus não, céus não
Emergido do oceano revolto se ergueu um monstro com cabeça de polvo e enormes asas de morcego e por mais que não pudesse discernir seus lábios, ela sabia que era ele quem cantava. Quando ele atingiu a pedra em que ela estava, a sua figura diminuiu até que ele se transformasse em um homem com traços parecidos com os dos nativos, envolto em uma túnica negra, enquanto seus cabelos escuros sacudiam com a tempestade.
Ao longe, como em um sonho, ela ouviu a voz do capitão gritar seu nome, mas ela não conseguiu refrear a si mesma, enquanto caiu nos braços da aparição.
Os índios ao redor gritavam em uníssono:
— Chutlhu! Chutlhu! Chutlhu!
Ela naufragou em seus braços, até que ele estivesse apoiado em um dos joelhos e ela estivesse quase deitada no chão, enquanto a voz dele ainda a mantinha em sua hipnose. Os olhos escuros dele brilhavam como se fossem feitos de água e ela podia ver os contornos do polvo alado em suas íris, enquanto ele entoava os últimos versos:
Enquanto o navio se rasgou e afundou.
Redemoinhos na água indo para o boca do Inferno
"Eu estou te implorando por favor, me acorde"
Quando o som de um tiro estourou no ar, ela acordou em choque e observou o homem se afastar apenas alguns centímetros e tocar o próprio peito, erguendo a mão e observando a mancha liquida de seu próprio sangue. Ele encarou o capitão alguns metros a sua frente segurando sua pistola tremulamente nas mãos e então ergueu Alina nos braços e se virou para o penhasco. Antes que ela pudesse ouvir a última frase, eles mergulharam no mar.
 
“Em todos os meus sonhos eu... "

Nenhum comentário:

Postar um comentário